A Lei de Recuperação Judicial e Falências deve passar por uma profunda mudança, o que inclui a alteração completa do regime da falência – que pode passar a ter prazo máximo de 180 dias para a liquidação e preços flexíveis na venda dos bens. Na recuperação judicial, além da previsão de ampliar o leque das empresas aptas a ingressar no processo, pretende-se mexer em questões sensíveis ao mercado.
Isso é o que mostra a primeira proposta apresentada por parte dos integrantes do grupo de trabalho criado pelo Ministério da Fazenda no fim do ano passado para estudar e propor medidas de aprimoramento às regras atuais. Esse texto vem sendo considerado como o documento de partida dos trabalhos. Ainda está em discussão e pode ser modificado. A versão final, esperada para o mês de maio, deve virar um projeto de lei.
O texto, por exemplo, inclui as garantias de natureza fiduciária – em que o credor, geralmente banco, detém bens do devedor até o pagamento total da dívida. Essas garantias, hoje excluídas dos processos, devem se sujeitar tanto à recuperação judicial como às falências.
Outras mudanças previstas abordam a permissão expressa na lei para os financiamentos, a regulamentação para a recuperação judicial de grupos de empresas e a venda de ativos no processo, que deve livrar o investidor de todo e qualquer passivo da devedora.
Esta será a primeira reforma da Lei nº 11.101, em vigor desde o ano de 2005. “O que estamos propondo é trazer as coisas de volta para o trilho”, diz o advogado Francisco Satiro, professor da Universidade de São Paulo (USP), membro do grupo e um dos autores dessa primeira proposta. “A recuperação judicial tem de servir para o que é, ou seja, uma situação melhor do que a liquidação. Já a liquidação tem de ser transformada em algo factível.”
Nesse primeiro documento há pelo menos dez pontos importantes de mudança, a começar pela ampliação da lista das empresas autorizadas a ingressar no processo. Hoje restrita aos empresários individuais e às sociedades empresárias, essa lista, pela proposta, ganha o reforço dos “agentes econômicos em geral”.
Nesse formato, estariam liberadas a participar do processo – na condição de devedoras – sociedades de economia mista e empresas públicas, além de produtores rurais, cooperativas, sociedades não empresárias e profissionais liberais. Ficariam de fora somente as instituições financeiras públicas ou privadas, cooperativas de crédito, consórcios, entidades de previdência complementar, operadoras de plano de saúde e seguradoras.
Pela proposta, no entanto, os bancos seriam impactados pelas mudanças na outra ponta, como credores. Isso em decorrência da inclusão das garantias de natureza fiduciária nos processos de recuperação e falência. Essa é uma das previsões mais importantes – e polêmicas -, segundo o mercado.
A inclusão desses valores nos processos, afirmam especialistas, vai trazer alívio às empresas em crise. Principalmente porque representam, na maioria da vezes, mais de 50% da dívida e não se sujeitam às condições do plano – que incluem descontos, prazos de carência e parcelamento.
Presentes nos processos, segundo a proposta, as garantias de natureza fiduciária seriam tratadas com prioridade absoluta. O texto prevê que, para não falir, o devedor terá de oferecer situação realmente vantajosa aos credores garantidos.
E entre esses credores aparecem ainda os credores com garantia real (como penhor e hipoteca). Essa classe, que também é composta em quase 100% por bancos, já faz hoje parte do processo, mas sem tantos privilégios. Seria, então, uma forma de valorizá-la.
No caso de a devedora ter a falência decretada, esses credores garantidos teriam prioridade no recebimento. Seriam considerados extraconcursais e estariam à frente de todos os demais. Haveria exceção somente às despesas urgentes – como os últimos três salários dos trabalhadores (até cinco salários mínimos) e os valores investidos pelo financiador da recuperação judicial, figura que também seria novidade no processo.
Toda essa questão, porém, não tem até agora a concordância das instituições financeiras. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) ainda não foi chamada a participar das discussões. E, ao Valor, informou que “não comenta o assunto”.
Advogados que atuam para instituições financeiras acreditam que não será uma briga fácil. Os bancos devem se mobilizar para manter as garantias de natureza fiduciária fora dos processos. E um dos argumentos é o de que, com as garantias dentro, o crédito ficará mais caro e restrito.
“Porque corre-se o risco de a lei expressar determinada situação, protegendo as garantias, e o Judiciário, ao julgar o tema, decidir de forma diversa”, afirma uma fonte ao Valor. “Qualquer negociação dependeria de uma proposta muito clara e expressa na lei.”
O texto em análise pelo grupo criado pelo Ministério da Fazenda poderá ainda facilitar a compra de ativos de empresas em crise. O conceito é o de evitar situações em que uma empresa que compra outra que faz parte de uma holding acabe sendo, por decisão judicial, obrigada a assumir dívidas.
Pela lei vigente, já há uma certa blindagem na compra de ativos da devedora (filiais ou as chamadas unidades produtivas isoladas). O investidor, conforme a lei de 2005, não está sujeito ao passivo fiscal e trabalhista da vendedora, por exemplo.
A proposta amplia essas condições: além de filiais e unidades produtivas isoladas, também ficariam livres de sucessão quaisquer bens da devedora, móveis e imóveis, e ainda quaisquer modalidades de venda dos ativos aprovadas pelos credores.
Além disso, haveria um dispositivo específico na lei deixando claro que o adquirente não responderia por situações e obrigações que venham a ser impostas ao devedor em razão de processo de qualquer natureza, inclusive os sancionatórios e indenizatórios (como as multas aplicadas por improbidade e em acordos de leniência).
Especialista na área, Bruno Poppa, sócio do escritório Tepedino, Migliori, Berezowski, Poppa Advogados, lamenta o fato de o Fisco ter ficado de fora da proposta do grupo. “Eu diria que é essencial ao processo. O sistema de insolvência precisa da sua reforma tributária, senão, não para de pé”, diz.
Essa é uma questão, segundo o advogado, que impacta na venda de ativos – mesmo existindo a blindagem da sucessão na lei. “Porque, na prática, o que vemos é o Fisco entrar com inúmeras ações judiciais”, pondera Poppa. “O Fisco ficar de fora prejudica e muito a segurança jurídica desse tipo de operação. E muitas vezes a venda da empresa é a sua melhor forma de recuperação.”
Não seria fácil, no entanto, incluir os créditos fiscais no processo. Isso por conta de previsão específica no Código Tributário Nacional (CTN). É possível, segundo especialistas, que mudanças nesse sentido dificultem a aprovação da lei no Congresso.
O grupo que está discutindo a reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falências é formado por 21 profissionais: oito do próprio Ministério da Fazenda, um da Receita Federal, dois da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, um do Banco Central, sete advogados e acadêmicos da área do direito e de economia e dois juízes.
Trabalharam nessa primeira proposta, no entanto, quatro deles: além de Francisco Satiro, os advogados e acadêmicos Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, Sheila Neder Cerezzetti e Cassio Cavalli.
Fonte: Valor Econômico