Há males que vêm para bem… Crise=Ameaça+Oportunidade… Fazer da necessidade uma virtude… Em tempos de operação “lava jato”, delações premiadas e acordos de leniência, a sabedoria popular, os cintilantes lugares-comuns dos gurus da administração e a sagacidade de Maquiavel se unem para proclamar o óbvio: doravante, a costumeira promiscuidade entre setor público e empresas privadas terá de acabar.
No mínimo, executivos de grupos multibilionários, como os das empreiteiras de obras de infraestrutura e energia hoje presos ou respondendo à Justiça, pensarão duas, ou mais, vezes antes de ceder a propostas de políticos e altos funcionários para pagamento de propina em troca de facilidades contratuais e outras.
Onde antes vicejava a impunidade, agora existe o risco bem concreto de longas sentenças de prisão e pesadíssimas indenizações.
É impossível dissociar esse desfecho do esgotamento político, fiscal e sobretudo ético dos recursos até hoje manipulados por Executivo e Legislativo para gerir o presidencialismo à brasileira.
Confesso, porém, o meu ceticismo em face de recorrentes propostas de reforma eleitoral e partidária destinadas a baixar esses custos materiais e morais. Até hoje, a inércia da cultura política e complexidades institucionais variadas têm frustrado sistematicamente a adoção de projetos como: cláusulas de barreira (ou de desempenho) para a significativa redução do número de partidos representados no parlamento; ou o fim das coligações em pleitos proporcionais (vereador, deputado estadual, deputado federal), de modo a demarcar sobre bases programáticas mais nítidas e límpidas a fronteira entre governismo e oposição; ou, ainda, o voto distrital (puro ou misto), capaz de baratear o custo das campanhas e ‘acorrentar’, democrática e eficazmente, os representantes aos seus representados, facilitando a estes a fiscalização dos atos daqueles. Isso para não mencionar uma ampla e profunda reforma administrativa que, entre outras metas relevantes, sirva para conter a acintosa distribuição de dezenas de milhares de cargos ‘em confiança’ a filhados de parlamentares e partidos políticos, reservando essas posições a servidores concursados, ‘de carreira’.
Tenho dúvidas, igualmente, sobre a viabilidade operacional de alguns itens do decálogo de medidas de “combate à corrupção” proposto pelo Ministério Público, com respaldo de quase dois milhões de assinaturas, e que já tramita na Câmara dos Deputados na forma do Projeto de Lei (PL) 4.850/2016, sob a chancela do veterano deputado paulista Antônio Carlos Mendes Thame (PSDB) e outros. Por sinal, muito mais razoável e eficaz do que inventar e sobrepor novos e paralisantes mecanismos de controle seria a retomada das privatizações, que tornam mais raras as oportunidades de corrupção mediante o encolhimento radical da ‘superfície de contato’ entre governo e setor privado. Porém, é do conhecimento geral a força dos preconceitos ideológicos e dos interesses corporativos que resistem a essa evolução.
Tampouco chego a me entusiasmar com a regra recentemente arbitrada pelo Supremo Tribunal Federal para financiamento de campanhas eleitorais, já válida para o pleito municipal deste ano: zero em doações (melhor chamá-las de ‘investimentos’) por pessoas jurídicas, limitando o abastecimento das contas dos candidatos e dos partidos às usuais fontes públicas (multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, recursos orçamentários para o Fundo Partidário) e às contribuições de pessoas físicas, algo totalmente estranho aos nossos costumes políticos. Montesquieu e outros grandes pensadores do direito e da política advertem para a precariedade das leis, não importa quão bem-intencionadas, como panaceia contra maus e arraigados costumes. Na realidade, pouquíssimos países mundo afora vedam o financiamento por empresas. Daí o meu indesejado, mas forçoso, prognóstico: as eleições de 2016, no tocante ao seu financiamento, oscilarão entre quatro problemáticos cenários — “Apoteose do Caixa Dois” (especialidade da contravenção e do crime organizado), “Laranjal em Flor” (centenas, talvez milhares, de doadores de fachada ocultando a identidade de grandes contribuintes com algum motivo para se manterem na clandestinidade), “Trumpismo Tropical” (autocontribuições dos candidatos muito ricos) e “Pau na Máquina…Pública” (um velho conhecido, sempre no limite da irresponsabilidade fiscal). Estimo que, antes de 2018, o Congresso corrija esse delírio legislativo com a introdução de dispositivos realistas e factíveis, tais como: tetos de contribuição por pessoas jurídicas guiadas pelo bom senso; proibição de que o mesmo ‘doador’ contribua para campanhas de partidos rivais; e, claro, punições exemplares aos transgressores, conforme escolha aleatória de casos a serem minuciosamente investigados pelas autoridades fiscalizadoras.
Considero que uma alternativa bem mais acessível para as empresas interessadas em descriminar sua interação com o governo consiste em participar, de modo transparente e produtivo, dos debates legislativos sobre a regulamentação do lobby (representação, mediação e articulação de interesses privados perante o poder público), possibilitando o aporte dos insumos de experiência e conhecimento dos seus executivos ou consultores de relações governamentais e institucionais. As principais proposições sobre a matéria que ora tramitam na Câmara dos Deputados são o PL 6.132/1990 (na origem Projeto de Lei do Senado 203/1989), do ex-senador Marco Maciel (DEM/PE); e o PL 1.202/2007, do deputado Carlos Zarattini (PT/SP), que tramita em conjunto com o PL 1.961/2015, dos deputados Rogério Rosso (PSD/DF) e Ricardo Izar Júnior (PP/SP). As duas últimas proposições são relatadas na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) pela deputada Cristiane Brasil (PTB/RJ). De modo geral, esses projetos objetivam assegurar algumas condições essenciais à transparência e à responsabilização das condutas de agentes públicos e privados na escolha, formulação e regulação de decisões de política pública: registro dos lobistas nos órgãos e entidades em que atuam; descrição detalhada das suas atividades e dos seus contatos com políticos; prestação de contas e divulgação dos gastos dos lobistas e dos seus empregadores ou clientes no desempenho dessas atividades.
Uma vez mais, nada de ilusões: aqueles que só sabem se movimentar e lucrar nas sombras aproveitam a histórica dificuldade da nossa herança patrimonialista e estatizante para lidar com conflitos de interesses legais e legítimos semeando obstáculos à tramitação desses e de outros projetos. O de Marco Maciel, de 1989, que já tivera uma versão preliminar no PLS 25/1984, não para de ser colocado, retirado e recolocado na pauta de votação do plenário da Câmara pelo menos desde outubro de 2001!
Felizmente, esse cenário começa a mudar. Uma geração de jovem profissionais se mobiliza para educar a opinião pública para a radical diferença que existe entre lobbying, de um lado, e tráfico de influência ou advocacia administrativa, de outro. Entidades de representação da categoria como a Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig) e o Instituto de Relações Governamentais (irelgov) fomentam a formação e a qualificação dos recursos humanos dedicados a essas atividades e fornecem um público cada vez mais amplo para programas de pós-graduação e aperfeiçoamento, a exemplo dos cursos de especialização (lato sensu) em Relações Governamentais da Fundação Getúlio Vargas (FGV — São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) e Institucionais do Ibmec/DF, ou o ciclo de conferências “Relações Governamentais na Estratégia Corporativa”, no marco da Educação Executiva do Sistema Indústria — Confederação Nacional da Indústria (CNI) e Instituto Euvaldo Lodi (IEL).
Esse novo contexto propiciará a sedimentação de consenso favorável a um arcabouço de regras disciplinadoras do lobbying, como aquelas que já há muito vigoram nas democracias avançadas. O caminho, sem dúvida, é esse mesmo; ainda assim, convém ter claro que, nos Estados Unidos, os principais diplomas que inspiram os projetos de lei acima referidos — Federal Regulation of Lobbying Act (1946) e o Lobbying Disclosure Act (LDA, 1995), substancialmente revisto e ampliado em 2007, na esteira do escândalo de distribuição de ‘presentes’ e viagens de recreio a congressistas e funcionários do executivo por Jack Abramoff, lobista de cassinos em reservas indígenas — não estão completamente a salvo de transgressões. Como apontam o cientista político James Thurber, da American University, e os pesquisadores do Center for Responsive Politics, embora o volume total declarado de dinheiro anualmente gasto com lobbying não tenha se alterado significativamente entre 2009 (3,5 bilhão de dólares) e 2015 (3,21 bilhões), o número de lobistas registrados declinou do seu pico de 14.829, em 2007, para 11.504 em 2015. O que teria acontecido: fecharam seus escritórios e abandonaram Washington? Não, simplesmente pararam de se registrar valendo-se de brechas legais e de um fraco sistema de fiscalização. Mais grave que isso: Thurber calcula que o total de pessoas que se dedicam aolobbying na capital americana está mais próximo de 100 mil; e que a soma geral de despesas, em 2013, superou 9 bilhões de dólares, quantia bem superior aos 3,2 bilhões então declarados.
Acima de tudo e antes de mais nada, os empresários precisam alterar a maneira como encaram e defendem seus interesses — interesses, insisto, legítimos e legais —, para que a sociedade os acompanhe e se livre de velhos preconceitos acerca das relações empresas — governo. Afinal, elas geram as oportunidades e os empregos que dignificam os trabalhadores e lhe permitem sustentar suas famílias, poupar e planejar uma vida melhor. Elas investem, contratam, pagam tributos — e como! —, com isso aquecem a economia, impulsionam o consumo, fazem a riqueza circular e irrigar as comunidades onde atuam, financiam a educação e a saúde públicas, a infraestrutura social, a proteção do meio ambiente. Por último, mas não em último, graças ao seu “saber de experiência feito” (Camões), têm elas a capacidade de auxiliar o governo a se prevenir contra os efeitos perversos e inesperados da aplicação de regras burocráticas impraticáveis e leis defeituosas aos ambientes em que estão acostumadas a operar.
O interesse público não se contrapõe, necessariamente, aos interesses privados. É a transação entre estes últimos que possibilita a consecução do primeiro.
Para concluir, empresas que alcançam um relacionamento saudável, maduro e exitoso com o governo não são aquelas que assediam com pleitos exclusivistas, em busca de privilégios e reservas de mercado; nem aquelas que logram influir escassamente na tomada de uma ou outra decisão do Legislativo e do Executivo — são, sim, aquelas que o próprio governo considera referências obrigatórias para a produção de melhores políticas, leis e regulamentos; aquelas que o governo se habitua a ouvir, a convidar para que participem de debates de alto nível em reconhecimento à relevância e à qualidade das informações e dos conhecimentos que agregam ao processo decisório. E, também, à confiança inspirada por sua atitude ética e por sua excelência técnica.
Fonte: ConJur